Autenticidade e transparência: a sociedade das imagens em rede
O perfil no Facebook de Marco Antônio (nome fictício) é bem comum. Uma foto de capa de uma viagem marcante pela Europa, uma foto de perfil com a esposa. Um homem de meia idade, com cerca de 200 amigos na rede social. Fotos com o neto, entre outras tantas, relembrando momentos de um passado muito feliz. Descendo pelo feed, é possível ver as felicitações recentes pelo seu aniversário em meados de 2020, várias delas. Uma ou outra imagem de bom dia ou orações publicadas por outros amigos, mais mensagens de aniversário - dessa vez do ano anterior, 2019. O perfil de Marco Antônio é bem comum e se parece com o de muitas pessoas ativas nas redes sociais em 2020.
Marco Antônio faleceu em 2016.
Em um mundo cada vez mais virtual, os conceitos de presença e imagem ganham novas conotações. Como seres sociais, temos sempre a nossa personalidade, gostos e comportamentos associados à nossa imagem, ou seja, ela acaba por influenciar diretamente nas relações com o outro e com o ambiente. Isso sempre aconteceu. O que muda nesta geração é que essa imagem está, agora, em rede. Esse “estar em rede” configura uma série de paradigmas que precisam ser analisados.
A primeira questão é: se a imagem carrega tanta informação e essa informação está em rede, sob quais aspectos devemos analisá-la? Diversos autores, sobretudo na literatura da área da computação, referem-se às principais características da informação. Stair e Reynolds (1998), por exemplo, dizem que a informação deve ser precisa (sem erros), completa (relevante), econômica (baixo custo de produção), flexível (adaptável ao contexto), confiável, verificável, simples, entre outros desdobramentos. Voltado ao exemplo da presença de Marco Antônio na rede social quatro anos após a sua morte, observa-se que nem todas as características acima podem ser contempladas ao nos depararmos com a imagem do usuário, da pessoa, na rede.
Já Feldman (1997) postula cinco características distintivas da informação digital. A primeira delas talvez seja a que mais se enquadra neste contexto: o autor diz que a informação digital é manipulável. Esta é a característica mais observável na internet. Um vídeo, uma imagem digital, um áudio, todos eles podem ser cortados, editados, modificados, o que corrobora com a visão do autor quando diz que a informação deve ser manipulável em todas as suas fases, desde a criação até a distribuição.
Isso já faz uma ponte com outra característica apontada por Feldman (1997): a informação deve ser passível de ser trabalhada em rede, ou seja, deve possibilitar o seu compartilhamento para acesso e uso simultâneo. As demais características apontadas dizem respeito à densidade e tamanho dessa informação, que devem ser pequenos, e à sua capacidade de serem processadas pelo computador. Enfim, numa primeira perspectiva, temos características que se referem à experiência do usuário no mundo físico (Stair e Reynolds, 1998) enquanto também observamos a perspectiva da informação no meio digital (Feldman, 1997). A junção desses paradigmas levam a reflexões quanto à autenticidade e à transparência dessas informações.
Então, não se deve confiar em informações digitais? Não seria correto afirmar isso. Lévy (1996) afirma que “não se trata de modo algum de um mundo falso ou imaginário. (...) a virtualização é a dinâmica mesma do mundo comum, é aquilo através do qual compartilhamos uma realidade.”. O autor continua afirmando que o virtual não é, de modo algum, um “reino da mentira”, mas sim que “o virtual é precisamente o modo de existência de que surgem tanto a realidade quanto a mentira" (Lévy, 1996, p.101). Autenticidade e transparência são, assim, conceitos relativos e devem ser observados de acordo com o contexto.
Sob o ponto de vista de negócios, marketing, do capitalismo informacional - termo citado por Manuel Castells em A Sociedade em Rede (2002) -, autenticidade e transparência são conceitos diferentes, e isso tem que ser levado em conta. Em Quicksprout (2016) foram publicados estudos sobre as diferenças entre esses dois termos e a primeira definição dada é quanto à transparência: segundo os autores, ela está relacionada à quantidade de detalhes que o usuário quer compartilhar. Já a autenticidade, por sua vez, não é tão quantitativa: ela é medida de acordo com o que o usuário compartilha.
A transparência afeta diretamente o valor da informação e a confiança do usuário. Isso é frequente, por exemplo, no meio acadêmico por sermos educados, desde os primeiros contatos com a área, para somente pesquisar e utilizar fontes confiáveis e verificáveis que fundamentem consistentemente a informação que precisamos. Contudo, essa educação não existe para todos: nem sequer é trabalhada no âmbito da educação básica em boa parte das escolas (no Brasil, por exemplo). O usuário de internet, que hoje é qualquer pessoa do planeta com acesso a um smartphone, não recebe uma educação prévia para utilizá-la.
Por outro lado, é fato que as redes sociais e a internet deram voz a todas as pessoas que as acessam, possibilitando estender lugares de fala e ampliar discussões que antes eram de nicho ou eram ofuscadas pela grande mídia. Entretanto, esse empoderamento, mesmo dotado de todos esses aspectos positivos, precisa - de novo - dessa educação supracitada para que a confiança da fala propagada na internet não seja abalada quando, por exemplo, um usuário publica algo que não compreende de fato, quando produz um conteúdo sobre o qual não tem domínio comprovado. Isso acaba sempre por atrair a atenção de diferentes públicos que conhecem ou não a respeito do assunto e que vão gerar e propagar, por sua vez, uma imagem da pessoa que publicou o conteúdo - que pode ou não corresponder à intenção original dela.
Assim, ser autêntico em rede é inspirar a confiança. Quicksprout (2016) também afirma que autenticidade é sempre binária: ou alguém é ou não é autêntico. Não existe meio termo. Mas, com a evolução das tecnologias, identificar essas questões têm sido cada vez mais difícil, uma vez que os algoritmos e a inteligência artificial têm conseguido aproximar muito a sua capacidade de processamento e aprendizagem com a cognição humana. Quais capacidades humanas, então, podem ser utilizadas para analisar e perceber esses níveis de transparência e autenticidade de uma informação digital?
Conforme apontado por Maffesoli (2012) citado por Donini e Cunha (2014), “nesta nova era, o imaginário se torna a norma do ciberespaço”. Isso refere-se ao fato de que retornamos a um pensamento coletivo de que a forma é mais importante do que o conteúdo, de redes sociais que mostram uma construção autobiográfica de relações sociais baseadas em imagens e na vida do outro. As autoras concluem dizendo que os seres humanos são movidos pela vontade de criar versões perfeitas de si e de suas vidas, então essa criação e valorização da imagem no virtual expressam um desejo de aceitação e de estender as fronteiras do tempo. Paul Virilio (1993) já alertava sobre o quanto a velocidade da internet e das tecnologias mudaram as nossas concepções de tempo e espaço e criaram a possibilidade do que ele chama de “homem sem história”, isto é, indivíduos em uma sociedade que cultua a imagem e vive de alucinações.
Dessa forma, como conviver num espaço onde autenticidade e transparência são elementos tão relativos e cada vez menos perceptíveis? A convergência entre virtual e real é inevitável - e o próprio virtual já faz parte do que conhecemos como real, conforme nos lembra Lévy (1996). A educação, a inclusão digital, as políticas públicas serão sempre instrumentos para garantir a democratização do acesso ao ciberespaço - e são sim grandes desafios. O medo das questões ligadas à transparência ou autenticidade não deve impedir o uso e o desenvolvimento da internet. Lévy (1996, p. 101) nos lembra novamente que “esse vácuo ativo, esse vazio seminal é a essência mesma do virtual. (...) cada salto a um novo modo de virtualização, cada alargamento do campo dos problemas abrem novos espaços para a verdade e, por consequência, igualmente para a mentira”. Então, não é a existência do ciberespaço que cria situações inautênticas e sem transparência, mas é a nossa atuação social nessa cibercultura, o que demonstra que estamos apenas no começo ainda desse “novo” paradigma.
Referências
Castells, M. (2002). A Sociedade em Rede (6ª ed.). Paz e Terra.
Feldman, T. (1997). An introduction to digital media. Psychology Press.
Lévy, P. (1996). O que é virtual. (1ª ed.). São Paulo: Editora 34.
Quicksprout. (2016). A Step-by-Step Guide to Using Authenticity and Transparency. Disponível em: https://www.quicksprout.com/a-step-by-step-guide-to-using-authenticity-and-transparency-to-improve-trust/
Stair, R.; Reynolds, G. (1998) Princípios de Sistemas de Informações: uma abordagem
gerencial.. Livros Técnicos e Científicos, Rio de Janeiro.
Tecsedu Blog (2015). Autenticidade e Transparência na Rede. Disponível em: http://tecsedu.blogspot.com/2015/01/autenticidade-e-transparencia-na-rede.html
Virilio, P. (1993) A Inércia Polar. Lisboa: D. Quixote.
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