A Cibercultura de Lévy: o Pharmakon do século XXI
Para iniciar esta reflexão, recorramos à seguinte frase atribuída ao Sheik Ahmed Zaki Yamani, ex-ministro do Petróleo da Arábia Saudita: "a idade da pedra não terminou por falta de pedras”. Esse recorte foi dito, é claro, num contexto político-econômico e o autor conclui dizendo que com o petróleo ocorrerá da mesma maneira.
Fato é que as mudanças sempre provocam medo, resistência. Já foi dito que o livro provocaria a ignorância o tirar os pensamentos da cabeça e depositá-los no papel; o mesmo foi replicado com a televisão e, é claro, com a internet. A grande questão que se levanta é que não há a necessidade de se concordar ou discordar, ser contra ou a favor da evolução, pois isso não mudará em nada. Estar aberto a conhecer e compreender esses avanços é necessário para nossa própria evolução.
Uma pergunta simples que pode estabelecer uma comparação prática e levar as pessoas a pensarem sobre isso é: você prefere continuar a usar seu smartphone ou prefere voltar a utilizar o telefone com fio? A resposta será óbvia em, praticamente, cem por cento dos casos. E discussões como essa geralmente se dão em relação à internet. Ela é o palco do ciberespaço e é onde se dissemina a cibercultura, conceitos abordados por Pierre Lévy em Cibercultura (1999).
Antes de mais nada, é preciso compreender esses dois conceitos. Lévy define, com base em muitas reflexões quanto a cultura, política, tecnologias, o ciberespaço como um novo meio de comunicação surgido da interconexão mundial dos computadores, da sua infraestrutura física somada ao “oceano de informações que nela trafegam”, sendo essas informações armazenadas nas memórias desses computadores - as quais se tornam, também, a memória da humanidade. Já a cibercultura é definida por ele como um “conjunto de técnicas, práticas, atitudes, modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço”. O motor dessa cibercultura é o que o autor chama de inteligência coletiva. O computador é, sendo assim, um gerador de signos dessa cultura, e o ser humano é indissociável dela, de suas imagens, linguagens, técnicas e ambientes.
Ou seja, para entender a cibercultura, é preciso ter em mente que ela é, em si e antes de mais nada, uma cultura, um novo universal. O que a difere das demais culturas é a sua indeterminação, sua instabilidade. Essa instabilidade se dá graças à própria internet, que é modificada hoje milhões de vezes por segundo, daí a dificuldade de analisar suas implicações sociais, cognitivas, econômicas e culturais (que são em si muito diferentes).
Internet é um ambiente de retroalimentação. Conforme apontado por Lévy, com a criação do hipertexto (que se define como um texto estruturado em rede) e do conceito de multimídia (entendido com um conteúdo que suporta diversos tipos de veículo de comunicação), a internet modificou a relação escritor-leitor, misturando os papéis. Isso também evidencia uma transformação em todos os outros campos, uma vez que a relação produtor-consumidor também se torna reflexiva. No campo da educação, pode-se citar a educação aberta e sua filosofia de abertura, colaboração, cocriação, reutilização. E são essas interações que sempre modificam e atualizam o ciberespaço, sendo ele, então, um espaço de criação e inteligência coletivas. Além disso, na internet de hoje, nada se apaga - mesmo quando exclui-se determinado dado/arquivo. O conceito de exclusão lógica é aplicado a qualquer programa hoje em dia, e consiste apenas de “desabilitar” a exibição, de deixar de fora do somatório final um dado que foi excluído. É como se não existisse, mas está lá - caso se necessite. O que tem implicações dicotômicas, como tudo (pharmakon?).
Assim, isso evidencia não só o potencial tecnológico das ferramentas que temos hoje como também expande a visão do ser humano como um todo. Pois a forma como a humanidade usa as ferramentas a seu dispor é o que a define - basta lembrar que os grandes passos dados pela raça humana foram graças às revoluções tecnológicas (revolução agrícola, revolução científica, revolução industrial). A técnica e sua intencionalidade é que criam condições para sua existência e evolução em cada contexto. E suas aplicações podem ser irreversíveis (vide o exemplo do telefone com fio). Lévy apontou a ideia da comutação de pacotes (as bases da forma como as redes transmitem dados hoje). Em 2020, temos a rede 5G se consolidando, o que não seria possível sem o conceito abordado pelo autor há vinte anos.
Isso aproxima ainda mais a questão cultural com a produção de novas tecnologias, pois estas são produtos da sociedade e da própria cultura. Ou seja, não é uma entidade com vontades próprias, ao contrário das visões apocalípticas apontadas e desmistificadas por Castells (2002) - que cita os medos que as pessoas têm de terem seus lugares tomados por máquinas quando, ao contrário, novas oportunidades são geradas com a tecnologia - e por Harari (2018), que aponta tanto as ficções populares da indústria do entretenimento que introduziram a revolução das máquinas quanto os anseios causados pela evolução acelerada das tecnologias de informação e comunicação e da biotecnologia. Séries de TV como Westworld, DEVS e Black Mirror discutem bem essas questões aplicadas em diversos contextos.
Contudo, no ciberespaço, onde essas tecnologias convergem, não se pode dar uma única dimensão (técnica, cultural, econômica) a um problema. A porta de entrada para ele é a digitalização da informação, pois dados digitais não se degradam, como os analógicos, e são processados muito mais rapidamente pois são, no fim, apenas números. E esses dados são utilizados por pessoas e por programas. Um programa, assim como as pessoas, também é um ator no ciberespaço. Ou seja, nem tudo o que existe nele hoje depende de interação humana. Os bots, robôs de inteligência artificial, os algoritmos, estão aí trabalhando vinte e quatro horas por dia. É claro que sofrem revisões e aprimoramentos por seres humanos, mas desempenham um papel bem autônomo na rede.
Visto assim, parece sim uma visão negativa, mas é preciso ter em mente que não é objetivo aqui fazer um juízo de valor, mas sim uma conceituação. Falando de aspectos positivos, o ciberespaço possibilita a proliferação dos serviços autônomos, consumir conteúdos de qualquer tempo/espaço e de serviços gratuitos. Basta observar quantos novos profissionais da internet surgiram durante a pandemia COVID-19 em 2020 ou quantas novas oportunidades e profissões foram criadas ou modificadas. Enxergar a manifestação do outro é uma possibilidade escancarada pela cibercultura. E os problemas políticos-econômico-sociais (tão incompreendidos ainda pelos Estados, conforme Harari (2018) nos lembra) vêm à tona. Fato é que o ciberespaço fornece empoderamento, e nem todos enxergam o empoderamento das massas como algo positivo.
De novo, a alteridade. As questões políticas, sociais, econômicas, todas se modificam com base na comunicação e suas formas.
Saindo do individual e citando um exemplo da indústria, a tecnologia do streaming é a porta de entrada da televisão e do cinema para o ciberespaço. Lévy acreditava que a TV se comportaria como uma mídia a parte durante um bom tempo, mas assistimos hoje à transição para esta mudança anunciada. Até mesmo estruturas tão tradicionalistas - como o Óscar - têm se renovado nesse sentido. Parece um exemplo fora de contexto, mas isso ilustra toda uma indústria, a do entretenimento, e uma cultura que se vê diante de um público que, agora, com o ciberespaço à sua disposição, também sabe criar conteúdo e não apenas consumir. Lévy nos lembra que “essas tecnologias (...) vieram de lugares inesperados para qualquer ‘tomador de decisões’” (p. 27). Isso reflete, mais uma vez, o quanto a internet empodera as pessoas.
E para interagir com a internet o ser humano precisa de interfaces - isto é, pontes, equipamentos para se conectar a ela. Quando cita esse conceito de interface, Lévy dá vários exemplos de sensores (além dos dispositivos como computadores, telefonia móvel, etc.) que já atuavam com base nos sinais corporais das pessoas, o que também é expresso por Castells (2002) quando diz que basta estarmos próximos a uma interface para estarmos no meio virtual. Uma evolução advinda desses pensamentos e percebida nos dias de hoje é o conceito de interação natural, por meio da qual nem é necessário mais tocar num dispositivo eletrônico para interagir com ele e com a rede. O sensor Kinect, da Microsoft, ilustra bem isso.
Mas então, ciberespaço e cibercultura, ou seja, o “mundo virtual”, na verdade não existe? Real e virtual são opostos?
Lévy também responde a essas questões ao conceituar o virtual como “toda entidade desterritorializada”. Ele subdivide sua definição em três dimensões: (I) a técnica, que refere-se à informática e demais artefatos tecnológicos que possibilitam a existência do virtual; (II) a corrente, que trata da separação entre o virtual e o físico; e (III) a filosófica, que, finalmente, conceitua o virtual como aquilo que existe em potencial, ou seja, que não é contrário do real e não se resume àquilo que está estática e imutavelmente posicionado no tempo e espaço. Essa última definição pode ser ilustrada pensando num exemplo simples: imagine um determinado arquivo (por exemplo, um Google Doc, um arquivo de texto online); ele está fisicamente armazenado em algum lugar, mas ele também existe em todos os outros lugares onde a rede esteja presente. Ele conclui, assim, definindo que o virtual é sim real e é constantemente atualizado.
Dessa forma, ficam evidentes as previsões acertadas por Lévy à sua época e a concretização de várias delas. A cibercultura hoje possui elementos cada vez mais interativos, dinâmicos e rápidos graças a toda essa evolução. As ideias sobre biotecnologia previstas pelo autor estão em pleno desenvolvimento, bem como a computação quântica. Para ilustrar, temos o esquema elaborado pelo professor Filippo Valiante Filho (2018) o qual demonstra a evolução das arquiteturas dos computadores e as novas tecnologias.
Valiante Filho (2018)
A computação neuromórfica usa exatamente os conceitos dos sistemas biológicos, como as sinapses e neurônios, para integrar processamento e memória. Além do aumento das capacidades dos computadores, tais tecnologias utilizam conceitos da cognição humana aplicada à computação (exatamente o que pontua Harari (2018) como a diferença básica desta nova revolução tecnológica). A computação quântica, por sua vez, pretende aumentar absurdamente as capacidades de processamento dos computadores ao mudar os paradigmas binários da computação - ao invés de 0 ou 1, agora é possível um mesmo bit ser 0 e 1 ao mesmo tempo. E “apenas” isso já é uma imensa revolução.
Assim, analisando algumas de suas nuances - pois não há como esgotar este assunto -, retornamos à ideia introduzida logo acima: a cibercultura é, antes de mais nada, cultura. Com seu potencial ao mesmo tempo inclusivo e exclusivo, o ciberespaço é e será cada vez mais o maior palco de interação da humanidade em todos os âmbitos. A evolução continuará, os supercomputadores de hoje serão smartphones de amanhã, e o “dilúvio informacional jamais cessará” (Lévy, 1999, p.14). Então, iniciativas individuais e coletivas têm de haver para que as potencialidades do ciberespaço sejam exploradas, distribuídas e democratizadas e seus desafios sejam tratados com o cuidado que as políticas públicas precisam ter ao lidar com qualquer cultura. Não é diferente com a cibercultura.
Referências
Castells, M. (2002). A Sociedade em Rede (6ª ed.). Paz e Terra.
Harari, H. N. (2018). 21 lições para o século XXI. São Paulo:
Lévy, P. (1999) Cibercultura. São Paulo: Editora 34.
Valiante Filho, F. (2018). Tendências Futuras em Arquitetura de Computadores - Prof. Filippo Valiante Filho. Retrieved 16 November 2020, from http://prof.valiante.info/disciplinas/hardware/tendencias-futuras-em-arquitetura-de-computadores
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